por Simbi Yvan - Unsplash
Deixa eu te levar pra uma curta aventura com gorilas nas selvas do Congo.
Você é um antropólogo que estuda esses maravilhosos primatas. Hoje, como em muitas outras infinitas manhãs, você se prepara para uma trilha montanha acima, guiado por seus amigos nativos, em busca de uma família desses primatas magníficos que tem sido objeto dos seus estudos nos últimos meses. Você checa a mochila pra garantir que tem todas as ferramentas necessárias para as muitas horas observando, fotografando e documentando a vida desses seres. Já há bastante informação a ser estruturada, sistematizada, esquematizada, teorizada e você parte na esperança de um encontro mais próximo. São horas abrindo caminho pela floresta fechada, com o sol ardente nas costas e os insetos por todo lado, até que, logo à frente, você o avista, o líder do grupo em toda a sua majestade.
Você não é mais um estranho, o grupo está acostumado com a sua presença, mas nunca foi permitido que chegasse tão perto. Você prepara o caderno e a máquina fotográfica, mas, dessa vez, a presença dominante dessa criatura desloca algo em você. Alguma coisa parece não encaixar. A câmera que era antes uma extensão das suas mãos e dos seus olhos, agora parece pesada, incômoda… estranha. Você deixa a máquina fotográfica de lado, permite que o olhar pouse no animal e entende que está vendo aquele gorila, talvez, pela primeira vez.
Ele não é mais um objeto do seu estudo, mas um sujeito em toda a sua inteireza. (1)
Agora feche os olhos e viva essa pequena estória na sua imaginação.
Essa é uma cena do filme Instinto, onde o antropólogo que você viveu nesse pequeno convite à imaginação, acima, é interpretado por Anthony Hopkins.
O filme não é uma obra prima (talvez se a estória tivesse sido contada por Werner Herzog…) o roteiro é fraco e, às vezes, meio forçado, mas há momentos de extrema beleza. Esse é um deles. E me toca, particularmente, porque me revela dois modos muito diferentes de atenção, de formas como nos disponibilizamos para o mundo. A primeira, em que ditamos as condições em que as coisas podem se revelar pra gente, buscando explicar o mundo, construir teorias, a fim de gerar previsibilidade, pavimentando o caminho para a manipulação e o controle. A segunda, em que nos abrimos para que o mundo se revele (se tivermos sorte e formos dignos) em nossa consciência, em seus próprios termos.
As duas são extremamente importantes para construir a experiência humana, mas nós nos deixamos seduzir pelo poder conferido pela primeira e nos afastamos da segunda.
O grande mitólogo e contador de estórias, Dr. Martin Shaw, tem uma frase que eu amo - To never leave Eden is to stay surrounded by spirit but remain uninitiated in soul. Como em todos os mitos, foi preciso deixar a casa, viver a separação, ficar em pé sobre nossas próprias pernas, fazer nossas próprias escolhas. Experimentar a capacidade de imaginar, se inspirar, conhecer, sonhar. A natureza da qual fazemos parte criou a consciência que nos permite representar o mundo e, com isso, aprender e, com isso, criar. Em nossa identidade de criadores, entretanto, nos imaginamos maiores do que somos, negamos nossa ancestralidade. Somos convidados agora a nos ajoelhar diante dessa mesma ancestralidade e reconhecer nosso verdadeiro tamanho (que não é pequeno), a professar nossa incapacidade de permanecer sozinhos, a pedir ajuda.
Estamos afastados, é claro, mas será que realmente nos separamos da natureza? Fico pensando se seria mesmo possível. A capacidade de nos colocarmos no segundo modo de atenção ainda está aqui. A natureza garantiu que fosse assim. Escrevendo aqui, em frente à janela onde fica minha escrivaninha, vejo as montanhas da Serra do Japi, escuto os pássaros, contemplo as nuvens em suas danças de formas, olho para o livro que estou lendo (The Spell of the Sensuous - David Abram). Também vejo meus vizinhos passeando com seus cachorros, parando para conversar. Há tanta generosidade. Baixo meu olhar e, em minhas paisagens internas, vejo a pandemia, as inundações recentes no sul, a seca na Amazônia, as guerras. Há também tanto chamado.
Que práticas podem nos ajudar a ressignificar esse poder de criação como um poder de co-criação?
Como seria criar rituais que nos colocassem em identidade de aprendiz?
No começo das minhas incursões pela fenomenologia Goetheana, fiz uma imersão na África do Sul. Atendendo a um convite dos facilitadores, me disponibilizei para uma árvore, durante uma semana, por uma hora, todos os dias no mesmo horário, em investigação contemplativa (como diria Goethe - em prática de empirismo delicado).
Voltei desse encontro com essas palavras:
Silent and grounded you stand
Yet you speak to me of the flow of life
I see no struggle
Only graceful invitation
I feel your presence
And finally breathe with you
Are we one?
Se eu pudesse oferecer algo dessa experiência, como caminho para o cultivo de uma sensibilidade e de uma "mente de principiante" (nas palavras de Thich Nhat Hanh) seria isso:
Criar uma rotina de observar o vivo que não tenha nenhum outro objetivo que não o da observação em si. Fazer isso com disciplina e rigor. Desenhar ajuda. Fazer por tempo suficiente para entrar em um estado de presença e engajamento que permita que aquele fenômeno se anuncie em você como significado.
Também ajuda cultivar perguntas:
Quando você está sozinho, no escuro, o que te faz parar para refletir?
Despindo-se de todas as formas com que o mundo te diz sobre como contribuir para um mundo melhor, o que te chama no mais íntimo do seu ser?
Sigamos.
Com a mente alerta,
a coluna ereta
e o coração tranquilo.
(1) Há mais uma experiência que se torna possível ao se relacionar com o gorila como sujeito, que é se relacionar com ele como verbo, como atividade, como gesto - a natureza gorilando.
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